Análise
Para os povos tradicionais, não é um ideal irrealizável e sim uma utopia possível que temos de construir
02/08/2011
Marcelo Barros
Em julho, os povos indígenas da Ameríndia recordam a figura de Bartolomeu de las Casas, o primeiro bispo católico que ainda nos primeiros tempos da colonização assumiu o papel de defensor dos índios contra os conquistadores. Este primeiro bispo de Chiapas, no sul do México, faleceu no dia 17 de julho de 1586. Nos Andes, um encontro de povos indígenas propõe ao mundo que, para salvar o planeta Terra, a humanidade deveria aprender o Bom Viver como regra ética e critério de organização das sociedades. É o Suma Kwasay dos quétchuas, ou o Suma Kamana dos aymara. O povo Guarani o chama Lekil Kuxlejal, sinônimo de “vida boa”. Signifi ca o que hoje denominamos de “qualidade de vida” e o Evangelho chama de “Vida em plenitude” (Jo 10, 10).
O mundo capitalista sempre prometeu às pessoas a possibilidade de se viver melhor e fala em otimização da produção e do trabalho. Os povos tradicionais não querem apenas isso. Almejam transformar profundamente o modo de viver. Priorizam a sacralidade da vida humana e de todos os seres vivos. Compreendem isso como compromisso de viver de modo sadio, feliz e harmonioso consigo mesmo, com os outros humanos e com todos os seres vivos. Para os povos tradicionais, não é um ideal irrealizável e sim uma utopia possível que temos de construir.
Antigamente, nas comunidades andinas, o bom viver era um método de vida e espiritualidade social. Com a invasão da cultura individualista e do consumo, para que alcancemos novamente este ideal, precisamos nos apoiar em um conjunto de princípios, critérios e iniciativas como alternativas ao tipo de desenvolvimento que privilegia o econômico, sem levar em conta a dimensão humana, social e ecológica. A Bolívia e o Equador inscreveram o bom viver nas suas constituições, como objetivo do Estado. Nestes países, inúmeras conferências e congressos procuram aprofundar um conhecimento cultural das diversas tradições indígenas. Garantindo, assim, uma conduta ética e espiritual que fundamente uma sociedade dirigida à realização de cada pessoa na comunidade e, a partir do cuidado social, garanta o equilíbrio nas relações entre as pessoas, povos, assim como com a Mãe Terra e toda a natureza.
Na sociedade capitalista, o desenvolvimento dos países era calculado pelo Produto Interno Bruto (PIB). Na década de 1990, o economista indiano Amartya Sem propôs como critério o “Índice de Desenvolvimento Humano”. Isso signifi ca levar em conta não só o aspecto econômico, mas a saúde, educação e liberdade social de cada povo. Já em 1970, no Bustão, país pouco conhecido da Ásia, o príncipe Jigme Singye Wangchuck propôs como critério de classifi cação, não a produção econômica e o desenvolvimento social, mas o “Índice de Felicidade Interna”, qualidade de vida digna, baseada nos princípios espirituais do Budismo. A questão é como avaliar o grau de felicidade de uma comunidade e das pessoas na sociedade. Uma ONG inglesa (Friends of the Earth) publicou uma série de itens para medir o grau de felicidade coletiva. Alguns destes elementos são: saúde, estabilidade social, possibilidade de vida familiar, condições saudáveis de trabalho, liberdade e lazer. No começo deste século, esta ONG elaborou uma pesquisa na qual segmentos da população de vários países responderam a um questionário. Além disso, estas famílias foram visitadas por voluntários que também se pronunciaram sobre as condições de vida nestes países. Os povos que se destacaram pelo índice de felicidade foram pequenos países como Costa Rica, estado desmilitarizado e relativamente pobre, a Colômbia depois da pacifi cação de sua guerra civil, e mesmo Cuba, vítima do bloqueio estadunidense. O povo brasileiro foi considerado dos mais felizes, apesar de tantos problemas sociais e políticos que enfrentamos. Nenhum país rico do G8 aparece na lista dos mais felizes. Os Estados Unidos ocupam o posto 150, igual ao Zimbabue, país africano pobre e ainda imerso em confl itos raciais.
Apesar de que existem grupos religiosos capitalistas que fazem do lucro e da prosperidade econômica um sinal de bênção divina, as grandes tradições espirituais sempre chamaram as pessoas a valorizar mais o ser do que o ter.
Marcelo Barros é monge beneditino, escritor e teólogo brasileiro.
Texto originalmente publicado na edição 438 do Brasil de Fato.