terça-feira, 2 de agosto de 2011

Desespero ou desfaçatez senil

Análise
Está tudo morto e enterrado agora, ou será que nós também iremos “celebrar o horror de tudo isso – com festa, velório e caixão”?

02/08/2011



Luiz Ricardo Leitão



Esta crônica deveria ser dedicada às últimas façanhas dos hermanos uruguaios no espetacular planeta bola (grandes vencedores da Copa América 2011 e vice-campeões do Mundial Sub17 no México, sem esquecer o 2º lugar do Peñarol na Taça Libertadores). Além dos títulos, há motivos de sobra para admirar o trabalho do técnico Oscar Tabárez e de seus pupilos, desde os talentosos Forlan e Suárez, até o singularíssimo Loco Abreu (raro dublê de jornalista e boleiro), não apenas dentro das quatro linhas, mas também fora de campo, onde o maestro promove uma autêntica revolução na formação dos futuros craques da Celeste olímpica. Por essas e outras, o astral de nossos vizinhos tem sido sempre o oposto do que vemos por cá, nesta distraída Bruzundanga, cada vez mais subtraída nas tenebrosas transações que os cartolas tupiniquins empreendem em nome do glorioso esporte bretão (e basta a farra da Copa 2014 para ilustrar o que lhes digo). Se o leitor quiser conferir, assista ao simpático videoclipe que os uruguaios gravaram com os músicos de seu país, cantando “A grito de gol, Uruguay va a la cancha...”

Bem, esse seria, decerto, meu mote privilegiado aqui na coluna, mas refiz meus planos depois de ouvir pelo rádio uma notícia segundo a qual um bando de cinco velhinhos teria assaltado uma agência fluminense dos Correios, mantendo um funcionário sob a mira de uma arma e escapando a pé com boa soma de dinheiro sem ser molestado por ninguém. Como não li nada a respeito na mídia impressa ou virtual, até me indaguei se teria sido alucinação do escriba. Contudo, seja delírio ou realidade, o mais inquietante é que o episódio nada possui de inverossímil por estas plagas. Em realidade, o ingresso da terceira idade no chamado “mundo da criminalidade” já se deu há muito tempo, assim como a progressiva participação de mulheres nas quadrilhas de larápios de todas as espécies, desde aquelas especializadas em fraudar a Previdência Social até as mais violentas, envolvidas com tráfico de drogas, sequestros, etc.

A julgar pelo relato tragicômico do agente ameaçado pelo bando, os assaltantes já estariam de fato em idade mais avançada, pois um deles teria até reclamado do pesado saco que lhe coube carregar com o fruto da ‘operação’, sendo orientado por um comparsa a levá-lo nas costas. Uma pergunta remoeu-me a cabeça desde o primeiro instante: afinal, seriam esses “velhinhos” meros aposentados fartos de tanto esperar por sua merreca mensal na fi la dos bancos ou tão somente o canto de cisne de larápios envelhecidos, que, protegidos pela eventual imunidade de seu estágio senil (as penas da Dona Justa são bem mais leves e condescendentes após os 70 anos), continuam sem nenhum pudor em seu ofício?

Desespero ou desfaçatez, qualquer das hipóteses nos adverte de forma contundente sobre o tosco modelo de sociedade que teimamos em cultivar. Nesta era biocibernética do mundo globalizado, em que a produção pouco vale e a especulação é o motor do capitalismo financeiro transnacional, como o mundo do trabalho lograria impor-se à vertigem sedutora do lucro imediato, para muitos a única fórmula capaz de manter o padrão hipertrofi ado de consumo que se difunde acima e abaixo da linha do Equador? Lembro-me do menestrel Renato Russo celebrando, com terrível sarcasmo, “a aberração de toda a nossa falta de bom senso, nosso descaso por educação” e exortando-nos a “festejar a violência e esquecer a nossa gente que trabalhou honestamente a vida inteira” – e pergunto-me se “também podemos celebrar a estupidez de quem cantou esta canção” (Perfeição, 1993). Lá se foram quase duas décadas: está tudo morto e enterrado agora, ou será que nós também iremos “celebrar o horror de tudo isso – com festa, velório e caixão”?



Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima Barreto – o rebelde imprescindível.



Texto originalmente publicado na edição 439 do Brasil de Fato.

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