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terça-feira, 16 de julho de 2013

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Sobre o autor: Fernando Pessoa
Nasceu em Lisboa. Considerado um dos mais importantes poetas modernistas. Criou heterônimos famosos como Alberto Caieiro, Ricardo Reis e Álvaro Campos.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Dia da Favela

Favela

O dia da Favela é comemorado no dia 04/11 desde 2006. A data foi escolhida porque em 4 de Novembro de 1900 o Estado, na pessoa de um delegado da 10ª circunscrição dialogou com chefe da polícia da época sobre uma favela, nesse caso o Morro Favella, hoje chamado de Providência, a primeira favela do Brasil. Nesta conversa eles trataram de como “limpar” aquelas áreas.
O Dia da Favela foi criado na mesma data deste acontecimento para transformar seu significado e destacar a luta pelo reconhecimento de direitos. Fonte (www.diadafavela.com.br)
Quanto à etimologia de favela, há duas hipóteses:
     Antônio Geraldo da Cunha, no Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, Rio, 1982, liga o termo a fava.
     José Pedro Machado, no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 4.ª ed., 1987, relaciona-o com favo.
     Compartilho a opinião de Cunha.
     Antenor Nascentes não consigna o termo em seu pioneiro Dicionário Etimológico, Rio, 1932, no qual trata apenas de substantivos comuns. Mas no tomo II, 1952 (nomes próprios), fornece preciosas informações no “Aditamento”. Transcrevo:
     “FAVELA. Morro da Bahia, em Canudos. De favela, diminutivo de fava, que deve ser um brasileirismo, pois os léxicos portugueses não dão. Favela é nome de um arbusto que Euclides da Cunha, Os Sertões, 41, aponta como sendo da família Leguminosae (a que pertence a fava). Morro do Distrito Federal, antigo da Providência. Tomou este nome depois da campanha de Canudos (1896-7). Veteranos da campanha pediram  permissão ao ministério da Guerra para construir casas para suas famílias no morro da Providência. Daí por diante, o morro, seja como recordação da campanha, seja por alguma semelhança de aspecto ou por estar sobranceiro à cidade, como o de Canudos, passou a chamar-se da Favela, nome que se tornou por assim dizer nacional”.
     Dois esclarecimentos ao texto de Nascentes:
     A citação de Os Sertões é a mesma que indico estar às páginas 37 e 38 da edição que uso.
     Distrito Federal é referência à cidade do Rio de Janeiro, capital do País até 1960.
     Na verdade, favela passou a termo de aplicação nacional, voltando a ser empregado como substantivo comum, com sentido nitidamente pejorativo:
“FAVELA, (...) // Conjunto de casebres toscos e miseráveis, geralmente em morros, onde habitam marginais (...).”  (Dicionário Caldas Aulete, Rio, Delta, Edição Brasileira, 1958.)
     O Lello Universal, Porto, s.d., em edição da década de 40, é mais radical:
     “FAVELA, s.f. Brasileirismo. Neologismo. Planta das caatingas. -  Morro habitado por gente baixa, arruaceira. Por analogia: lugar de má fama, sítio suspeito, freqüentado por desordeiros”.
O Novo Dicionário Aurélio, Rio, Nova Fronteira, 2.ª edição, 1986, ameniza sobremaneira a definição do termo, adaptando-a à realidade, que faz não só marginais habitarem favelas:
     “favela. (...) 1. Conjunto de habitações populares, toscamente construídas (por via de regra em morros) e desprovidas de recursos higiênicos”. (...)
     O Michaelis – Dicionário Prático da Língua Portuguesa -, São Paulo, Melhoramentos, 1987, segue a mesma linha:
     “ Favela, s.f.  Aglomeração de casebres ou choupanas toscamente construídas e desprovidas de condições higiênicas”.
O Novo Aurélio Século XXI, Rio, Nova Fronteira, 3.ª ed., 1999, adota a mesma redação do Aurélio de 1986 e dá como sinônimos morro (RJ) e caixa-de-fósforo (SP), além de registrar favelado como “habitante de favela”, assim como desfavelar (“acabar com favela existente em”), desfavelamento (“ato ou efeito de desfavelar”) e favelizar-se (“adquirir aspecto ou condição de favela”). Fonte: (http://www.casaeuclidiana.org.br/).

terça-feira, 27 de setembro de 2011

O Ocaso da Educação.


é assim que se escreve

“Nada do que é currículo em escola é fundamental. Você tem de aprender a pensar, e os professores têm de perceber seu ponto de vista, para onde orientar melhor seus dons. Escola deve ser inspiradora, estimular a imaginação, a criatividade e não a repetição, os testes de memória. Educação é amor, amor que se estende a tudo, não só a teu filho ou família. A vida é uma longa lição de humanidade, e a descoberta do amor faz parte disso.” (Bruna Lombardi).                        

“Eu sempre fui apaixonada pelo conhecimento. E de certa forma sempre tive esse papel, mesmo em casa. E, se eu não tinha conteúdo para ajudar meus filhos, então tinha que buscar. E eu fiz isso por amor ao conhecimento e por amor aos meus filhos.”
(Maria Vilani Gomes, Educadora)
                          

 A ultima edição da Revista Trip tem como tema a educação, do editorial da revista peguei essas duas citações de duas mulheres de formações tão distintas, mas que trazem um mesmo sentimento, de que a educação da maneira como esta sendo feita, esta fadada ao fracasso. A educadora citada é mãe do rapper Criolo ( ótima sugestão para quem curte música boa e inteligente) que por sinal esta nas páginas negras da revista. Eles dizem em suas entrevistas, que a educação visando apenas o mercado de trabalho e ganhar dinheiro não deu certo, o que salta aos olhos, o ENEM esta ai para comprovar. O investimento em educação sempre foi baixíssimo no Brasil, nunca tivemos o ensino como prioridade. Desde a educação básica, ate as pseudo-universidades passamos por um processo de "desaprendizagem". Desaprendemos a pensar, a sermos criativos, desaprendemos a sermos humanos, aprendemos a sermos produtos de um sistema que "embrutece" para não dizer coisa pior. Temos vários exemplos de escolas que realmente cumprem o papel de educar para a vida, mas esses exemplos não suprem a demanda por "saber". O empresário Ricardo Semler tem um projeto educacional nos moldes do que seria desejável. mas será que nossos gestores estão interessados em que nossos alunos aprendam a criticar? Ricardo Semler em suas palestras enfatiza o quanto nosso processo educativo anda defasado : "“Por que temos férias escolares de três meses?” “Há 150 anos as escolas eram rurais e as crianças tinham que ajudar na colheita”.
Com uma cultura educacional arcaica e limitadora, não poderíamos ter resultados piores. Ontem  a Folha de São Paulo, publicou uma matéria a respeito de instituições de ensino que estão recrutando alunos em ONGs, igrejas e centros comunitários, através de seus lideres, que recebem em torno de 100,00 por aluno matriculado. O mercado das universidades esta super aquecido no momento, governantes inescrupulosos se vangloriam pelo acesso da classe C ao ensino superior, onde quem mais se da bem são os donos das faculdades. O aluno sai de lá sem aprender nada, com um diploma que não lhe dará condições de competir no mercado de trabalho, nem muito menos um pensamento critico, que seria o esperado de uma universidade. Isso quando o aluno não financia os estudos através do FIES e termina a faculdade com uma dívida de 15 anos. Precisamos começar a pensar na educação das nossas crianças a partir de casa, acompanharmos o seu desenvolvimento e participarmos ativamente da sua vida, ou então, estaremos criando apenas, mais produtos para esse sistema que se autodestrói.


terça-feira, 2 de agosto de 2011

Desespero ou desfaçatez senil

Análise
Está tudo morto e enterrado agora, ou será que nós também iremos “celebrar o horror de tudo isso – com festa, velório e caixão”?

02/08/2011



Luiz Ricardo Leitão



Esta crônica deveria ser dedicada às últimas façanhas dos hermanos uruguaios no espetacular planeta bola (grandes vencedores da Copa América 2011 e vice-campeões do Mundial Sub17 no México, sem esquecer o 2º lugar do Peñarol na Taça Libertadores). Além dos títulos, há motivos de sobra para admirar o trabalho do técnico Oscar Tabárez e de seus pupilos, desde os talentosos Forlan e Suárez, até o singularíssimo Loco Abreu (raro dublê de jornalista e boleiro), não apenas dentro das quatro linhas, mas também fora de campo, onde o maestro promove uma autêntica revolução na formação dos futuros craques da Celeste olímpica. Por essas e outras, o astral de nossos vizinhos tem sido sempre o oposto do que vemos por cá, nesta distraída Bruzundanga, cada vez mais subtraída nas tenebrosas transações que os cartolas tupiniquins empreendem em nome do glorioso esporte bretão (e basta a farra da Copa 2014 para ilustrar o que lhes digo). Se o leitor quiser conferir, assista ao simpático videoclipe que os uruguaios gravaram com os músicos de seu país, cantando “A grito de gol, Uruguay va a la cancha...”

Bem, esse seria, decerto, meu mote privilegiado aqui na coluna, mas refiz meus planos depois de ouvir pelo rádio uma notícia segundo a qual um bando de cinco velhinhos teria assaltado uma agência fluminense dos Correios, mantendo um funcionário sob a mira de uma arma e escapando a pé com boa soma de dinheiro sem ser molestado por ninguém. Como não li nada a respeito na mídia impressa ou virtual, até me indaguei se teria sido alucinação do escriba. Contudo, seja delírio ou realidade, o mais inquietante é que o episódio nada possui de inverossímil por estas plagas. Em realidade, o ingresso da terceira idade no chamado “mundo da criminalidade” já se deu há muito tempo, assim como a progressiva participação de mulheres nas quadrilhas de larápios de todas as espécies, desde aquelas especializadas em fraudar a Previdência Social até as mais violentas, envolvidas com tráfico de drogas, sequestros, etc.

A julgar pelo relato tragicômico do agente ameaçado pelo bando, os assaltantes já estariam de fato em idade mais avançada, pois um deles teria até reclamado do pesado saco que lhe coube carregar com o fruto da ‘operação’, sendo orientado por um comparsa a levá-lo nas costas. Uma pergunta remoeu-me a cabeça desde o primeiro instante: afinal, seriam esses “velhinhos” meros aposentados fartos de tanto esperar por sua merreca mensal na fi la dos bancos ou tão somente o canto de cisne de larápios envelhecidos, que, protegidos pela eventual imunidade de seu estágio senil (as penas da Dona Justa são bem mais leves e condescendentes após os 70 anos), continuam sem nenhum pudor em seu ofício?

Desespero ou desfaçatez, qualquer das hipóteses nos adverte de forma contundente sobre o tosco modelo de sociedade que teimamos em cultivar. Nesta era biocibernética do mundo globalizado, em que a produção pouco vale e a especulação é o motor do capitalismo financeiro transnacional, como o mundo do trabalho lograria impor-se à vertigem sedutora do lucro imediato, para muitos a única fórmula capaz de manter o padrão hipertrofi ado de consumo que se difunde acima e abaixo da linha do Equador? Lembro-me do menestrel Renato Russo celebrando, com terrível sarcasmo, “a aberração de toda a nossa falta de bom senso, nosso descaso por educação” e exortando-nos a “festejar a violência e esquecer a nossa gente que trabalhou honestamente a vida inteira” – e pergunto-me se “também podemos celebrar a estupidez de quem cantou esta canção” (Perfeição, 1993). Lá se foram quase duas décadas: está tudo morto e enterrado agora, ou será que nós também iremos “celebrar o horror de tudo isso – com festa, velório e caixão”?



Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana, é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima Barreto – o rebelde imprescindível.



Texto originalmente publicado na edição 439 do Brasil de Fato.